Aborto legal: falhas na rede de apoio penalizam meninas e mulheres

As desigualdades sociais no Brasil podem explicar por que meninas e mulheres buscam apoio para o aborto legal mesmo após 22 semanas de gestação, alertam pesquisadoras no tema. O Projeto de Lei 1904, atualmente em discussão no Congresso Nacional, equipara a interrupção da gravidez após esse período ao crime de homicídio.

 

A proposta gerou reações na sociedade. No ano passado, o Brasil registrou 74.930 estupros, o maior número da história, dos quais 56.820 foram contra vulneráveis. Atualmente, a gravidez decorrente de estupro é uma das situações que autorizam o aborto no país.

 

Em 2023, o Brasil registrou 2.687 casos de aborto legal, segundo o Ministério da Saúde. Desses, 140 envolveram meninas de até 14 anos de idade – mais que o dobro do número de 2018, quando foram registrados 60 procedimentos. Na faixa etária de 15 a 19 anos, foram 291 abortos, em comparação a 199 procedimentos há cinco anos.

 

A socióloga e pesquisadora Jacqueline Pitanguy explica que meninas na puberdade ou antes desse período, muitas vezes estupradas por pessoas próximas como pais ou familiares, nem sempre percebem que estão grávidas. “Há muitas que não percebem que estão grávidas. Nem sabem o que é gravidez”, exemplifica a professora.

 

Jacqueline Pitanguy, coordenadora da ONG Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), enfatiza que a legislação brasileira não estabelece prazo para interrupção da gravidez em caso de estupro e que, quanto mais cedo for realizado o aborto devido à violência, melhor. Ela argumenta que a gestação avança no tempo devido às desigualdades sociais enfrentadas por crianças, adolescentes e mulheres adultas. “É um indicador da falha do sistema público de saúde em prover serviços de atenção à saúde acessíveis às mulheres em todo o Brasil”.

 

Ela acrescenta que é comum haver demora para que pessoas próximas percebam uma mudança no corpo. “A barriga dessas meninas só aparece mais tarde. Elas não têm menstruação regular. Portanto, essas meninas são extremamente vulneráveis ao avanço da gravidez”, exemplifica.

 

Outra pesquisadora, a enfermeira obstétrica Mariane Marçal, enfatiza que há uma estimativa de que 20 mil meninas menores de 14 anos engravidem por ano na última década, sendo 74% delas negras. “Gestações de menores de 14 anos são frutos de estupro. Há uma epidemia de gestação infantil. Acompanhamos muitas meninas que nem sabiam o que havia ocorrido. O risco de morte em uma gestação tão precoce é cinco vezes maior em meninas menores de 14 anos”, diz a enfermeira, que coordena projetos na ONG Criola, voltada para os direitos de mulheres negras.

 

Mariane Marçal explica que fez um levantamento sobre a mortalidade materna de mulheres negras na Baixada Fluminense entre 2005 e 2015. “Os casos de adolescentes são muito comuns”. Ela ressalta que, também nas comunidades, há julgamentos morais sobre as meninas. A enfermeira recorda um caso em que acompanhou uma menina de 8 anos, estuprada, que nunca havia menstruado e engravidou.

 

Além da infância, mulheres adultas também enfrentam dificuldades para realizar aborto legal no Brasil. “Ela tem mais capacidade de perceber e começa a procurar um lugar para interromper a gestação, mas mora em um município que não tem serviço”, lamenta a socióloga Jacqueline Pitanguy. Ela explica que esses obstáculos ocorrem antes das 22 semanas de gestação, mas as mulheres são vítimas de adiamentos no sistema de saúde e na ordem judicial.

 

“Em geral, uma mulher pobre, muitas vezes sem meios para se deslocar, no desespero de interromper a gestação, quando finalmente consegue chegar a um serviço, está com 23 semanas. Há uma falha no sentido de atender o direito à saúde e os direitos reprodutivos das mulheres ao não oferecer serviços suficientes”, critica. Esses obstáculos são frequentemente citados no sistema de saúde como “objeção de consciência” dos profissionais de saúde e pelo agendamento de consultas consecutivas sem uma decisão rápida dos profissionais, exemplifica Mariane Marçal.

 

Paula Viana, coordenadora do Grupo Curumim (PE), lamenta que apenas 3,6% dos municípios no Brasil ofereçam o serviço de aborto legal, aumentando a dificuldade para mulheres que moram longe dos grandes centros e nas periferias. “A pessoa vai se dirigir a um serviço de atendimento à vítima de violência sexual e lá será atendida. Se for o caso de interrupção da gravidez, será informada sobre isso e os tipos de tratamento. Em geral, quando é mais precoce, o tratamento é muito seguro. No Uruguai e na Argentina, por exemplo, é realizado em casa”, diz Paula, que também é enfermeira obstétrica.

 

O reduzido número de municípios com serviços de aborto legal resulta na invisibilidade dos crimes e da real situação das mulheres vítimas de violência. “Infelizmente, o estigma do aborto é tão grande na sociedade que afasta as pessoas dos seus direitos. Muitas vezes, elas não sabem que têm o direito de interromper uma gravidez indesejada. Nos casos de risco de morte ou malformação, como a anencefalia, isso é tratado no âmbito da saúde”, explica Paula Viana.

 

Ela acrescenta que o estigma é alimentado por propostas semelhantes ao PL 1904. “Monitoramos o Congresso e há mais de 40 proposições muito parecidas com essa. O estigma faz com que as pessoas tenham medo. A pessoa fica grávida de um estupro e, mesmo assim, acha que está errada”.

 

A legislação brasileira atual prevê o direito ao aborto nos casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida para a mulher e anencefalia fetal (desde 2012). “Nós temos mulheres que engravidaram, que buscaram ajuda após estupro. Até o diagnóstico e a busca por ajuda, certamente, o tempo será maior que 22 semanas”, diz a médica Albertina Duarte, coordenadora do Programa Saúde do Adolescente do Estado de São Paulo e chefe do Ambulatório de Ginecologia da Adolescência do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.

 

“Se a mulher for estuprada, pode procurar imediatamente o serviço de saúde. Não necessita de boletim de ocorrência. A palavra da mulher é fundamental. O serviço especializado já tem protocolos”, afirmou.

 

A psicóloga Marina Poniwas, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), acrescenta que, além de não necessitar de boletim de ocorrência, a própria equipe de saúde deve preencher os documentos necessários. “O Sistema de Saúde deve atender, acolher e orientar a vítima e realizar o procedimento de forma protetiva e segura, nos casos previstos em lei”.

 

Ela reitera que o aborto legal deve ser garantido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “O problema que enfrentamos é a desinformação de profissionais de saúde e também a atuação baseada em crenças ideológicas que promovem uma segunda violência às meninas e mulheres que buscam o serviço”.

 

Ela avalia que ocorre uma confusão pelo uso do termo “aborto legal”, já que o abortamento é a interrupção da gravidez até a 20ª e 22ª semana de gestação. “A lei não fixou limite de idade gestacional para a interrupção de gestação, permitindo a interrupção também a partir da 22ª semana. Laudo médico e exames só são necessários em casos de gestação de risco e anencefalia”, afirma Marina Poniwas.

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